Por J. A. Dias Lopes (*)
Poucos pratos da cozinha campeira conquistaram tanto sucesso fora do Pampa, a região na qual foi criado, quanto o carreteiro, arroz carreteiro ou arroz de carreteiro. Sua difusão fora do Rio Grande do Sul pode ser creditada aos agricultores que deixaram a terra natal para plantar arroz ou soja em Goiás e Mato Grosso, estados nos quais acabou adotado, como se fosse originário do Centro-Oeste do Brasil; e às churrascarias de espeto corrido ou rodízio, hoje espalhadas mundialmente.
Receita puro-sangue, o carreteiro fornece um extraordinário aporte alimentar pela associação do carbo-hidrato do arroz com a proteína do charque, seus ingredientes básicos. Serve como prato central da refeição, parceiro do churrasco ou conforme a imaginação. A receita original manda usar apenas charque refogado na cebola, que depois cozinha em água com o arroz. No momento de ir à mesa, convém incorporar ovos cozidos e tempero-verde picados. Uma pitada de pimenta respeita a tradição. Mas nada de tomate, ingrediente que os viajantes do Pampa não costumavam transportar, porque durava pouco. O carreteiro foi inventado na condição de comida de viagem.
Como o nome indica, surgiu no tempo do carro de bois, veículo primitivo e simples, conhecido dos babilônios, fenícios, egípcios, romanos e trazido ao Brasil pelos portugueses. Revelou-se imprescindível na época dos primeiros engenhos de açúcar e na colonização do país. No Pampa – a grande planície coberta de vegetação rasteira que ocupa 63% do Rio Grande do Sul, estendendo-se em parte da Argentina e ocupando o Uruguai inteiro – chamavam esse veículo de carreta. Além disso, era um meio de transporte diferenciado. Cobriam-no de zinco ou couro abaulado. Tinha as rodas radiadas e não de madeira fechada, como nos existentes em outras regiões do Brasil.
Mas também andava lentamente. A velocidade ficava em torno de três quilômetros por hora. Sua capacidade de carga variava de 450 a 1500 quilos. Não produzia o mesmo som estridente dos similares do Sudeste e Nordeste, por exemplo – o canto, lamento ou gemido, anunciador do carro de bois. As duas rodas giravam independentes uma da outra e não “rolavam” com o eixo, como no resto do Brasil. Desse modo, faziam menos ruído. Seus condutores eram chamados de carreteiros (português) ou carreteros (espanhol). Em outros lugares do país ficaram conhecidos como carreiros.
Uma, duas ou três juntas (parelhas) de bois puxavam a carreta pampiana. Dois homens a conduziam. Um ficava dentro, na parte da frente, manejando a guiada, vara comprida dotada de ferro na ponta, para picar e instigar os animais; o outro ia a cavalo ao lado, ajudando-o. Nas viagens longas, quando transportava diferentes produtos, fossem da estância (couro e lã) ou nacionais (fumo, aguardente e açúcar), a carreta andava em caravana. Voltava ao ponto de partida com gêneros indispensáveis à vida no campo ou mercadorias para abastecer o comércio.
Nas paradas, habitualmente à noite, perto de um rio ou riacho, onde existisse água limpa e lenha para o fogo, o grupo formava um círculo, para melhor proteção e defesa, inclusive dos animais selvagens. Ia e regressava acompanhado de cavalos de montar e bois para serem abatidos e transformados em churrasco nos dias mais tranquilos. Entre os gêneros alimentícios que levava para consumo próprio, sempre havia arroz, charque, cebola, sal e gordura para cozinhar. No dia a dia, os condutores saboreavam carreteiro.
O prato requer o legítimo charque bovino, carne salgada e desidratada, curtida em mantas, típica do Pampa. O ovino constitui opção. Preparado com a carne fresca ou reaproveitada de cozimento anterior, merece usar outro nome. A palavra charque vem de charqui, da língua indígena quíchua, ainda hoje falada por grupos étnicos andinos da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Assemelha-se à carne-seca de outras regiões do Brasil, mas apresenta maior quantidade de sal (12-15%) e permanece mais tempo exposta ao sol.
Com isso, dura mais, tendo sido por essa razão um importante produto de exportação do Rio Grande do Sul. A carne sai da parte dianteira do boi e da menos prestigiada ponta de agulha. Difere da carne-de-sol largamente consumida no Nordeste, feita com toda a carcaça bovina e menor teor de sal (5-6%), passando por secagem rápida e resultando internamente úmida. No carreteiro, o charque exibe seu aroma e sabor pronunciados. Obviamente, deve ficar de molho na água durante pelo menos três horas, antes de cozinhar. Bom carreteiro!
(*) J. A. Dias Lopes, jornalista e escritor, é um gaúcho de Dom Pedrito apaixonado por Lavras do Sul.
CARRETEIRO
Rende de 8 a 10 porções
INGREDIENTES
.2 kg de charque de boa qualidade
.1 cebola grande picada
.1/2 xícara (chá) de óleo
.5 xícaras (chá) de arroz
.Ovos cozidos e tempero-verde picados para polvilhar na hora de servir
PREPARO
1.Limpe o charque, retirando fora as pelancas.
2.Corte em cubos de 1cm, lave muito bem e coloque de molho em água fria por cerca de 1 hora e meia. 3.Escorra e deixe por mais 1 hora e meia em nova água.
4.Escorra novamente, passe a carne para uma panela e junte água fria, o suficiente para ultrapassar dois a três dedos da carne.
5.Deixe ferver por cerca de 50 minutos ou até que o charque fique macio.
6.Retire o charque, reservando o caldo (quente) do cozimento.
7.Numa panela, de preferência de ferro, doure a cebola no óleo quente. Junte o charque e vá fritando até pegar um pouco no fundo da panela, mexendo de vez em quando, com a panela destampada.
8.Acrescente o arroz e frite com o charque, mexendo sempre, até os grãos ficarem bem soltos. 9.Coloque então o caldo (quente) que ficou reservado e complete com água bem quente. Para cada xícara de arroz são necessárias duas xícaras de líquido.
10.Quando ferver, diminua o fogo e cozinhe o arroz com a panela tampada, por cerca de 20 minutos, ou até a água secar. Verifique se é necessário colocar sal. Sirva o carreteiro polvilhado com os ovos cozidos e o tempero-verde.
Receita preparada pelo grande cozinheiro campeiro Jarbas Duarte Pessano, natural de Uruguaiana, mas radicado em Porto Alegre, RS.
HARMONIZAÇÃO
O delicioso vinho tinto Paralelo 31 Gran Reserva, da Bueno Wines, combina perfeitamente com o carreteiro. Qual o motivo? Graças ao seu assemblage de Cabernet Sauvignon (austero), Merlot (aveludado e macio) e Petit Verdot (adstringente), harmoniza-se com os ingredientes do prato, onde o arroz, junto com o ovo cozido e o tempero-verde amenizam a intensidade do sabor do charque. O Paralelo 31 Gran Reserva, é um dos melhores vinhos elaborados no Brasil. Apresenta cor quase violácea, bouquet de frutas pretas maduras, como amora e ameixa. Na boca, revela acidez equilibrada e taninos macios. Estagia 12 meses em barris de carvalho francês e americano, o que lhe confere o baunilhado e as notas macias. Tem 14% de álcool.