Por Vinícius Brum
O episódio que deflagra o surgimento da Califórnia da Canção Nativa é largamente conhecido, pelo menos entre aqueles que estiveram ou ainda estão imersos no ambiente dos festivais.
Na cidade de Uruguaiana, uma emissora de rádio AM resolveu promover festival de música popular. Vários grupos participaram dele, entre os quais o Grupo de Arte Nativa Marupiaras. Por não ter se classificado, o grupo quis saber o motivo da desclassificação. Soube, então, que a peça que defendera era regionalista, gauchesca, como se costuma dizer inadvertidamente, como se também se falasse em arte brasileiresca.
Esse foi o ovo.[1]
Desta forma, ainda que sucinta, pode-se ser descrito o nascimento do original festival que acabou por gerar um movimento que está incrustado na cultura sul-rio-grandense nas últimas quatro décadas. Não que isto, lá no nascedouro, estivesse sendo ou pudesse ser vislumbrado.
A Califórnia surge pela inconformidade de alguns jovens artistas diante de uma desclassificação gerada não por apreciações estéticas e sim por uma postura de não reconhecimento de uma pretensa identidade. O que provocou a indignação dos alijados daquele 1o Festival da Música Popular da Fronteira promovido pela rádio São Miguel não foi algo ligado à qualidade da canção apresentada – a milonga Abichornado[2] de autoria de Colmar Duarte, com a interpretação do Grupo Os Marupiaras[3] - mas sim a justificativa de que a desclassificação fora motivada por se tratar de uma canção regional gaúcha (gauchesca!?!).
Hoje me sinto meio abichornado,
Pastorejando uma inquietude estranha.
Meu peito é como um fundo de banhado
No silêncio tão surdo da campanha.
Sinto meu coração, como empacado,
Com sestro de bagual que nunca apanha.
No vento há cheiro de capim queimado
E na garganta um amargor de canha.
Quem me dera pudesse, como outrora
Quando piá, galopeando campo afora,
Chorar bem alto, pra mágoa espantar;
Ir espalhando no pó das estradas
Lágrimas que deixei mal-ensinadas
E hoje forcejam pra me ver chorar.
Os organizadores do evento por certo jamais poderiam suspeitar o tamanho do vespeiro que estavam cutucando. Reza a lenda que a madrugada que sucedeu ao festival foi embalada por serenatas dedicadas pelos descontentes a cada um dos integrantes da comissão julgadora que havia perpetrado o “ultrajante veredicto”. Possivelmente também, nesta madrugada se possa encontrar uma das sempre provisórias origens do mais afamado festival de música do Rio Grande do Sul.
Ainda que as motivações que deram origem à primeira edição do festival tenham sido essas, temos que ressaltar que, do ponto de vista estético, tanto a canção desclassificada, como a forma de compor que a Califórnia acabou consolidando pouco ou nada guarda das raízes da gauchesca platina. Se nesta o que prepondera é, como já vimos, por deliberação do cantor, a linguagem oral do gaúcho, no festival e nas suas reproduções posteriores, o que se evidencia – e isto já se faz perceber de forma clara no LP da 1a. Califórnia, gravado ao vivo no palco do Cine Pampa – hoje Teatro Rosalina Pandolfo Lisboa – é de uma sofisticada elaboração cancionista.
Lembremos aquelas duas condições verificadas por Jorge Luis Borges para o surgimento e fixação da gauchesca platina: estilo de vida dos gaúchos e uma cultura urbana que se identifica com ele. É possivelmente por essa identificação que João Simões Lopes Neto, um dos autores mais importantes da literatura gaúcha, cuja obra, quer pelo pioneirismo, quer pela excelência estética, figura entre as maiores escritas no Brasil, através da compilação das Lendas do Sul, narra a formação histórica do nosso estado. A M’boitatá nos diz do homem primitivo, o índio, senhor destas terras antes da chegada do branco europeu; a Salamanca do Jarau que conta a chegada dos jesuítas e sua interação com o povo índio, e Negrinho do Pastoreio que dá conta da primeira organização social com base no modelo da estância e da escravidão negra. Mas é nos Contos Gauchescos que Simões nos apresenta o gaúcho modelar: Blau Nunes, o vaqueano. E é pela voz de Blau que aquele estilo de vida é narrado. E esta voz é verossímil, porque é a voz de um pertencimento. A temática consagrada por Simões recorrentemente servirá de inspiração para canções no ambiente dos festivais nativistas. Assim como a substância folclórica e literatura regional também serão fontes mais ou menos presentes nesta produção cancionista.
Voltemos, contudo, àquele momento inaugural: a primeira edição da Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul. Com promoção do Centro de Tradições Gaúchas Sinuelo do Pago, entre os dias 08 e 10 de dezembro de 1971, ocorreram as etapas eliminatórias do concurso. Foram apresentadas trinta e seis canções das quais dezoito foram selecionadas para duas noites semifinais, 17 e 18 de dezembro. Desta fase foram eleitas as dez canções finalistas que concorreram aos troféus e prêmios oferecidos pelo festival na noite de 19 daquele mês. O troféu máximo, que veio a se configurar num ícone dos destaques da música gaúcha, era a Calhandra de Ouro. Mesmo com as interrupções sofridas nestes mais de quarenta anos, principalmente na última década, o troféu continua em disputa, posto que até hoje nenhum compositor conseguiu a façanha de conquistá-lo por três vezes consecutivas.
O que se seguiu, principalmente depois da primeira década de existência da Califórnia, foi uma vertiginosa proliferação de eventos análogos ao modelo surgido em Uruguaiana. Salvadas as peculiaridades microrregionais, os regulamentos que orientaram o surgimento de festivais por todo o território rio-grandense, e também fora dele, seguem o modelo proposto em 1971. Entre os festivais rio-grandenses, nestes cinquenta anos de nativismo (que comemoramos neste ano de 2021) pode-se destacar o Musicanto Sul-americano de Santa Rosa, a Coxilha Nativista de Cruz Alta, a Tertúlia Nativista de Santa Maria, a Moenda da canção de Santo Antônio da Patrulha, o Carijo da canção nativa de Palmeira das Missões, etc.
Mesmo sem guardar nem a forma, nem o conteúdo da expressão literária da gauchesca platina, parece plausível que se possa considerar a premissa borgeana como correta: um estilo de vida rural e um indivíduo urbano que se identifica com tal modelo. Salientando-se mais uma vez que a voz preponderante não é a do gaúcho histórico, e sim a de alguém que o percebe e fala por ou sobre ele. Como o próprio J. L. Borges ressalta no magnífico poema El Gaucho[4]:
Hijo de algún confín de la llanura
Abierta, elemental, casi secreta,
Tiraba el firme lazo que sujeta
Al firme toro de cerviz oscura.
Se batió con el indio y con el godo,
Murió en reyertas de baraja y taba;
Dio su vida a la patria, que ignoraba,
Y así perdiendo, fue perdiendo todo.
Hoy es polvo de tiempo y de planeta;
Nombres no quedan, pero el nombre dura.
Fue tantos otros y hoy es una quieta
Pieza que mueve la literatura.
Fue el matrero, el sargento y la partida.
Fue el que cruzó la heroica cordillera.
Fue soldado de Urquiza o de Rivera,
Lo mismo da. Fue el que mató a Laprida.
Dios le quedaba lejos. Profesaron
La antigua fe del hierro y del coraje,
Que no consiente súplicas ni gaje.
Por esa fe murieron y mataron.
En los azares de la montonera
Murió por el color de una divisa;
Fue el que no pidió nada, ni siquiera
La gloria, que es estrépito y ceniza.
Fue el hombre gris que, oscuro en la pausada
Penumbra del galpón, sueña y matea,
Mientras en el oriente ya clarea
La luz de la desierta madrugada.
Nunca dijo: soy gaucho. Fue su suerte
No imaginar la suerte de los otros.
No menos ignorante que nosotros,
No menos solitario, entró en la muerte.
[1] LOPES, Cícero Galeno. Uma tentativa de esboço crítico nos trinta anos do Califórnia da Canção Nativa do Rio Grande do Sul. In: DUARTE, Colmar Pereira e ALVES, José Édil de Lima. Califórnia da canção nativa: marco de mudanças na cultura gaúcha. Porto Alegre: Movimento, 2001.
[2] Abatido, desanimado, desalentado.
[3] Em guarani significa “pessoas felizes”. O grupo era formado por Ricardo Pereira Duarte, Tasso Lopes, Júlio Machado da Silva Filho e Colmar Pereira Duarte.
[4] Este poema foi musicado por Pedro Aznar.